Estou tão cansada de ser crescida. Quero ser pequenina outra vez.
Espreguiçar de manhã e saber que o dia ia ser tranquilo. Bastava comer a comida toda que a avó da farinha colocava no meu prato, fazer os deveres da escola direitinhos e arrumar as minhas bonecas depois de brincar. E tudo corria bem.
Nos dias mesmo bons, o avô Manel contava-me histórias e eu ficava ali boquiaberta a ouvi-lo. E sonhava! Sonhava que um dia eu ia visitar aqueles lugares todos que o avô falava.
Nos dias mesmo bons, podia colocar dose extra de tulicreme no pão que avó da farinha não ralhava.
Nos dias mesmo bons, a avó Lucília fazia-me umas papas de farinha e leite polvilhadas com canela. E quando ia às compras à mercearia do azeiteiro, dava-me chicletes!!!! A minha mãe nem imaginava que isso acontecia e por isso este era um segredo muito bem guardado entre mim e a avó Lucília.
Nos dias mesmo bons, o avô Pinto Novo dava-me uma nota verde de 20 escudos só porque eu lhe dava um xi coração. Eu não percebia para que é que servia aquela nota mas devia ser especial porque a mamã dizia para colocar no mealheiro, uma caixa quadrada castanha e laranja que dizia Caixa geral de depósitos.
Nos dias mesmo bons, andava no quintal com a avó da farinha a ver as couves que cresciam, as ervas daninhas que rebentavam na horta e logo tinham de ser arrancadas, as flores que abriam no jardim e tinham um cheiro tão intenso e tão bom, a plantação de crisântemos do avô Manel que eram para os fiéis (não entendia bem mas percebia que era importante), a dar milho às galinhas, ervas aos coelhos e a ver os pintainhos acabados de nascer.
Nos dias mesmo bons, íamos à titia Salete e ela fazia umas torradas deliciosas e, às vezes, brincava com a Natércia que também estava lá. Se a avó da farinha estivesse bem disposta, até ficava a jantar na casa da titia.
Nos dias mesmo bons, a professora da escola marcava poucos trabalhos e no caminho até casa, eu e os meus companheiros conversávamos sobre o que íamos fazer durante a tarde. Sim, porque nesse tempo bom, as aulas terminavam às 13h.
Nos dias mesmo bons, eu ia para a casa da D. Odete e do sr. Domingos e via, com olhar de espanto, pedacinhos de madeira serem transformados em peças de artesanato lindas que ainda ficavam mais lindas quando a D. Odete as pintava, com uns pincéis fininhos e muito delicados. Pontinhos, florzinhas, rabioscas, pequenos traços que davam às peças um carácter único.
Não sabia eu que, quando fosse crescida, tudo desaparecia… os trabalhos da escola são cada vez mais e as aulas não terminam às 13h. E agora nem sequer estou com os meus amigos a conversar no recreio. Estou fechada em casa, em frente a uma máquina que fala e para onde falo e escrevo. Dizem os professores que estamos juntos na mesma mas não é nada igual, não senhor! Não vejo o brilho dos olhos das minhas professoras nem ouço os gritinhos e sorrisos alegres dos meus amigos. E estou sempre presa… ao computador…
Ao lanche, já não posso comer pão com toneladas de tulicreme porque alguém descobriu que faz mal à barriga… Não percebo! A mim nunca fez mal. Pelo menos quando era pequenina!
E depois, anda toda a gente zangada, tudo com cara de caso. Não sei o que quer dizer isso mas a avó da farinha dizia sempre isso quando via alguém muito preocupado. Por isso, eu acho que andam todos com cara de caso.
E não há abraços. Abraços apertadinhos daqueles que reconstroem o coração.
E não há conversas tranquilas. Só notícias de doença e de morte, de desespero, de desanimo.
Nos dias um bocadinho melhores, o telefone toca mais vezes e podemos falar com alguns amigos. Mas só podemos falar. Eu que gosto tanto de abraços…
Nos dias um bocadinho melhores, dou uma voltinha aqui perto de casa mas se alguém passa perto, não posso dar-lhe um aperto de mão, um beijo na cara ou um xi coração.
A minha casa está triste. O meu jardim está triste.
Até o cheiro das flores está diferente.
Os dias são cinzentos.
Eu quero voltar a ser pequenina porque eu tenho saudades de toda a gente.
